O Bahia Notícias conversou com o advogado paulista Hédio Silva Jr., ex-secretário de Justiça de São Paulo, que representa o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro), para entender a denúncia feita pela entidade contra a cantora. O mestre e doutor em Direito Processual, fundador do JusRacial e do Idafro, que também é conhecido por atuar na defesa da ialorixá e líder quilombola Bernadete Pacífico, assassinada na Bahia em agosto de 2023, explicou o motivo da ação.
"Você tem dois aspectos fundamentais. Primeiro, religião afro-brasileira é patrimônio cultural definido pelo Estatuto da Igualdade Nacional e definido por jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. É patrimônio cultural. A festa de Iemanjá é patrimônio cultural. A música permite a interpretação de que ela se dirige tanto ao orixá quanto à festa dedicada ao orixá."
Foto: Carta Capital
Com o contexto da canção, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) foi consultado para saber se foi solicitada alguma alteração na letra, lançada em 2004 por Claudia Leitte ainda na época do Babado Novo. A música, que aparece creditada a Alan Moraes, Durval Luz, Luciano Pinto e Nino Balla, não tem a artista como titular. Após a consulta, foi confirmado que não houve pedido de alteração para a letra que a artista canta desde 2014.
"Nós fomos atrás do ECAD para saber se a tal alteração que vinha sendo anunciada teria sido feita ao ECAD. Nós vamos precisar de uma determinação judicial, mas a pesquisa que nós tivemos no ECAD aponta que não foi feita alteração nenhuma na letra da música. Quando você vai avaliar a letra da música, Yeshua está completamente descontextualizado ali. Se ela tivesse alterado a estrofe, mas não. Se a estrofe dissesse 'quando a baixar joga em flores a saúde Nossa Senhora dos Navegantes'. Ok, Nossa Senhora dos Navegantes é uma entidade, uma divindade católica que está associada à água, está associada a flores. 'Saúde Yeshua' não há nenhum sentido. Não se pode falar em criação artística porque do ponto de vista, digamos assim, de uma estética possível, não é estética nenhuma, é uma improvisação."
O advogado pontua que se a alteração tivesse sido solicitada pelos compositores da música, o entendimento seria outro. "Não se pode falar em alteração por autêntica motivação genuína motivação dos compositores que sequer, pelo que nós entendemos os compositores sequer pedirem alteração. Então, tudo leva a crer que essa alteração é resultado da intolerância religiosa de alguém que cantou a canção durante décadas e agora, por uma razão de ordem privada dela resolve não pronunciar o nome de orixá. Isso estaria tudo bem se nós não estivéssemos tratando de um patrimônio cultural que a orixá representa."
Para Hédio, o caso se torna ainda mais curioso pelo contexto, se tratando de uma música da Axé Music, movimento que foi nomeado de forma pejorativa pelo jornalista Hagamenon Brito e ressignificado pelos artistas da cena para algo positivo.
"Quando ela deixa de pronunciar a palavra e ela substitui a palavra por Jesus, ela está promovendo o apagamento cultural, histórico que inclusive chama atenção o fato que ela não quer mais pronunciar Iemanjá, mas não tem nenhum problema em pronunciar Axé Music. Então, os indícios, não estou dizendo que ela é uma embusteira ou que ela é estelionatária, mas os indícios são de embuste e estelionato. Porque Axé Music, ok, mas Iemanjá não."
Após a representação formulada pela ialorixá Jaciara Ribeiro e pelo Idafro, que já se transformou em um inquérito civil, Hédio afirma que os próximos passos serão dar entrada em um requerimento pedindo para que Claudia Leitte explique a mudança em juízo.
"Mãe Jaciara da Oxum, que perdeu a mãe dela, Mãe Gilda de Ogum por intolerância religiosa, está requerendo, vamos dar entrada ainda hoje, para que Claudia Leitte, em juízo, explique isso. Explique porque, depois de décadas cantando a canção, mudou a letra. Ela está descaracterizando o patrimônio cultural, ela está ofendendo as lideranças, as pessoas, qualquer pessoa da religião, então, mãe Jaciara irá processá-la criminalmente por injúria religiosa. Não é razoável essa desqualificação de tudo que diz respeito a cultura negra no Brasil."
O advogado se antecipou nas críticas que já estão sendo feitas nas redes sociais pela dimensão que o caso com Claudia Leitte tomou. Segundo Hédio, a situação com a ex-Babado Novo ligou um alerta para que todos os episódios como este sejam tratados na Justiça.
"Isso não é algo novo e agora precisa de uma resposta inclusive por parte das instituições. Então, daqui para frente se aparecer qualquer coisa nesse sentido, nós vamos representar um cível, se for o caso, vamos representar criminalmente. Quem estiver praticando um crime vai responder. As pessoas vão dizer que é 'mimimi', mas eu sempre digo, você imagina um pai de santo, ali, na Praça Castro Alves, pega uma hóstia, monta uma barraquinha e põe ali um cartaz ‘Vendo o petisco de Oxalá’, comercializando hóstia. Em meia hora, eu, que poderia tomar um avião aqui para defender ele, não iria livrar ele da cadeia."
O doutor ainda pontuou a importância da validação do sentimento religioso quando se diz respeito a religiões de matrizes africanas. "Quando se trata de sentimento religioso cristão, o sistema jurídico brasileiro é absolutamente ágil, rápido e tal, para assegurar a proteção do sentimento religioso. Mas quando se trata de sentimento religioso de macumbeiro, se é tratado como picuinha. Daqui para frente não, não vamos permitir mais isso. Não vai ficar mais assim. Pode até não dar em nada, porque a gente não tem controle das instituições jurídicas, mas nós vamos levar as últimas consequências cada denúncia dessa."